quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Educação: Carta aberta...

Perdão, professor! 

Tive uma professora, Dona Dealdina que, muito linda, me ensinou os primeiros numerais com canções delicadas, historinhas e desenhos. O 2 por exemplo, era um patinho. Eu guardo dela uma espécie de amor materno, com ternura de quem acolhe, foi a mãe de minhas primeiras letras e ninguém tirará do meu peito esse rico aprendizado pela via do afeto. E olha que eu vinha de uma casa com pai, mãe, irmãos e o carinho deles. Pois se neste coração que não era carente tal inscrição se fez, imagine o que não faz ou o que não faria no coração de uma criança que vive conflitos cruéis e abandonos dentro da família? Dona Dealdina era apaixonada pela profissão, tem até hoje um português impecável e uma letra que de tão linda dá vontade de a gente beijar. Letra de professora. É de uma época em que era prestigioso ser professor. Dizia-se: “O rapaz é muito bom, a mãe é professora...” Ela sabia que pais e mestres se revezam nestes papeis. Tudo que ensina Mestre. Dona Dealdina com muita responsabilidade amava sua profissão e fazia de sua sala de aula um ninho de atenção, carinho, delicadeza, criatividade e, creiam-me, aprendizagem. A ela e a esse tipo de professor, peço perdão. Também peço àqueles que não puderam estudar direito, que têm que se esgoelar trabalhando em várias escolas para reunir os pingados oriundos da extensa carga horária e assim aumentar sua renda mensal. Este professor que muitas vezes nem a própria língua fala direito, o professor semi analfabeto a quem não é oferecido formação consequente que considere o futuro de uma nação, sofre e faz sofrer. Peço perdão pelo descaso que essa nação oferece a esse profissional na mão do qual tudo vem explodir. Ele toca o aluno e percebe que está com febre; o que fazer? Deixa pra lá? Liga para a mãe, chama o médico, medica? Ou então detecta-se na criança uma possível marca de violência e até de assédio sexual. Está esse professor preparado? Dele, na mão do qual tudo estoura, quem cuida? Quem o capacita num sistema conteudista que gratifica o professor que atinge metas e rendimentos que não comprovam o real aprendizado do aluno para a sociedade e muito menos forma um cidadão atento ao coletivo, sabedor de que sua felicidade solitária em detrimento da exploração e da desgraça do outro não pode ser chamada de felicidade? Peço perdão por um sistema educacional que ainda não entendeu que não haverá uma revolução definidora para os caminhos brasileiros se não pela educação. Não existe outra. O país ainda não entendeu que quem gasta mais dinheiro com escolas e inclusão gastará menos construindo menos prisões. Mas eu não vejo um projeto educacional que envolva com clareza a dimensão da palavra “educar”. No recente Seminário de Cultura e Educação, em Brasília, vê-se que estamos tentando construir isto, mas não é fácil porque a mudança exige radicalidade. Todos os programas de educação resultarão frágeis enquanto forem executados por um professor despreparado, não desenvolvido na sua auto confiança, na sua expressão, enquanto não houver no mínimo centenas de Escolas Parque criadas pelo grande Anísio Teixeira, espalhadas pelo território brasileiro como conceito oficial. Precisamos recuperar o prestigio da profissão que é mestra das outras todas. Como pode uma nação prosseguir sem cuidar dos que ensinam e são porta-vozes dos saberes da civilização? Não consigo compreender por qual mágica isso se daria. Precisamos dar ao professor a qualidade que ele merece, tratá-lo como peça principal do progresso e não como um caso de polícia. É triste a aprovação de vários alunos que não leem sequer um texto em voz alta com alguma compreensão para ele e para o público. Além de tudo, quase ninguém quer ser professor por vocação. Os poucos que há ouvem a desanimação: “Para de palhaçada, hein? Vai ser professor e vai morrer de fome.” Perdoe, professor, nossa falta de educação. 

Peço perdão, professor, o seu dia 15 passou e há pouco para comemorar, a não ser o avanço nas negociações do fim da greve e a persistência dos que, apesar dos pesares, inventam caminhos, burlam tolas regras, criam atalhos para provocar algum pensamento, alguma reflexão na sala de aula. Louvo a resistência daqueles mestres provocadores do saber, dos inventivos que fazem, muitas vezes, de sua casa o cinema da cidade, e se transformam nos verdadeiros secretários de cultura daquela comunidade. Parabéns a estes visionários sonhadores, mas sigo pedindo perdão por um sistema educacional que faz com que a categoria vire uma legião de mal pagos, mal cuidados, mal capacitados na corrida aflita por certificados e lista de presença em cursos burocráticos. Peço perdão à dedicada e comovente professora baiana, Ivonete, que me disse chorando, que até o ano 2000 os professores de ensino fundamental em Salvador eram semi analfabetos. Enquanto essa cena acontecia, policiais, também em franco desamparo educativo, atacavam violentamente os professores em greve, numa atitude emblemática de como o país trata seus mestres. Parecem menos importantes que o pré-sal, parecem menos importantes que o petróleo, parecem menos importantes que as armas, os bancos e os carros. Pois não haverá bom futuro sem que o professor mantenha a cabeça erguida diante de um país que volte a considerar esta profissão como modelo, e sem que este professor se assuma e assuma a nação como protagonista da história. Precisamos cuidar dele. Por suas mãos passam gerações. Muito mais caro nos sai o descuido por ele. Se ele não entender uma poesia e não souber dizê-la, seus alunos também não entenderão; se ele for inseguro, frio, não criativo, inflexível e opressor, provavelmente das mesmas mazelas e desamparos essas gerações perecerão. O mestre é o espelho da nação. Em uma parceria entre OIT, Fundação José Silveira, em Salvador, FUNDAC e nós da Casa Poema, estamos capacitando gestores e sócio educadores em Unidades de Internação onde ficam crianças e adolescentes que cometeram crimes, a usarem a poesia como ferramenta de autoconhecimento, como reconstrutora da cidadania e preconizadora da paz. Raramente se vê um verso que conclame a guerra, que incite a matança de inocentes. O poeta é um pacifista, um quixotesco pensador que acredita na possibilidade de justiça no mundo. Portanto, essa arte que é interdisciplinar, deve estar na sala de aula, na cidade, na vida cultural do país. Normalmente as Unidades que se dizem sócio educativas dos menores infratores não os educam; há tímidas iniciativas que apontam para o reencaminhamento desse menino à trilha do sonho, mas ainda é pouco. Todos sabemos o quanto essas instituições se assemelham à prisões. Por isso, é importante este trabalho de cuidar de quem cuida deles. Claro que há belas exceções, mas via de regra, o Brasil tem um corredor dos excluídos na Escola Pública e outro corredor de excluidores na escola privada, os pseudos privilegiados, que também não recebem uma educação humana, criativa, uma cultura reflexiva que faça pensar, uma arte-educação que desenvolva os sentidos. Triste pátria! Se escarafuncharmos encontraremos a falta de educação no fundo em todas as feridas brasileiras. A ignorante desconsideração pelo coletivo numa sociedade individualista conectada mais virtualmente do que na vida real acirra a corrupção, gera o desprezo pelo outro, pelo meio ambiente, pelo planeta. Foi a má educação do velho provérbio “farinha pouca, meu pirão primeiro”, que levou o país a esta bancarrota moral deixando a classe política e toda sociedade, em geral, eticamente em maus lençóis. O lixo entupindo os bueiros, os rios poluídos, até capitais sem saneamento básico, hospitais sem leitos, polícia que mata trabalhador, tudo isto encontra na desnutrição educativa o seu motivo. Não acredito em outra revolução que não seja educacional e os protagonistas desta revolução são os professores. Clamo por uma campanha que os priorizem, que compreenda estes profissionais como o maiores produtores de desenvolvimento de uma nação. Dizem que só há uma maneira de se prever o futuro, construindo-o. O que estamos fazendo então? Caminhando para o abismo? Peço perdão a você, mestre, que merece maior importância dentro da palavra progresso. Vivemos num país que não reflete, num país que, em vez de se conhecer, alisa suas raízes, perde seus índios, perpetua a discriminação, desmata e entra em descompasso com uma sociedade que já aprova a união homoafetiva, por exemplo. Torço para que eduquemos os professores que ficaram paralisados e que pensam não ter nada mais a aprender; estes que há mais de 20 anos não memorizam sequer uma canção; escrevo também para fortalecer aos que, mais preparados, se sentem solitários na contramão de uma escola perdida arte e dos tão preciosos recursos humanos. Perdão, professor, porque separamos a arte da cultura, perdão pelo desmatamento, perdão, porque há políticos que roubam, perdão porque muitas famílias perderam o diálogo, perdão por olharmos só para o nosso próprio umbigo, perdão por chamarmos o cabelo crespo de cabelo ruim, perdão porque vocês são mal pagos, perdão porque a polícia não nos protege, perdão pelos presídios-universidades do crime, perdão pela intolerância, pelo racismo institucional, perdão pela guerra e pela cega ambição. Perdoa, é tudo falta de educação.  Elisa Lucinda, outubro, 2013.

Ressalta-se que a autora do pedido de remissão, e grifo nosso, é também atriz, poetisa e cantora, e, pelo discurso em baila, reiterados são os pedidos a real aplicação de uma política séria e compromissada com a educação brasileira, em consonância com a Constituição Federal e garantida pelo Estado. Se há uma preocupação em deixar um mundo melhor para todos, melhor será prepará-lo agora, já, sob pena de se resvalar no caos, especialmente no globalizado. O Planeta agoniza pelo descaso com e para com as ações derivadas a partir da EDUCAÇÃO ofertada ao (do) seu povo!

Reflita...
Ainda, há tempo!

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